DEZEMBRO E O AMOR GUARDADO: “NÃO ERA PRA SER”

De todos os meses do ano, dezembro é aquele que conquistou o direito à imortalidade, e não é por ser o último estágio do ano, nem tem a ver com o som melancólico de harpas que assinalam a chegada do Natal, e muito menos por guardar a data em que me tornei gente e vi, pela primeira vez, a luz deste mundo.
Não, todos esses eventos são cumulativos, mas não explicam a minha predileção por dezembro. Este mês tem algo de subversivo, de quebra de paradigma, de encerramento de um ciclo de opressão e o descortinar de uma janela nova, que se abre para o universo mágico do coração, que tem como regra o direito de ser livre.
E quando escrevo assim, é claro que me transporto para um outro tempo, quando ainda criança me sentia como um passarinho preso à gaiola da sala de aula. Escola tinha então o significado de prisão, o contraponto da razão de ser da mais bela fase da existência humana, em que tudo são sonhos, leveza, diversão. A escola estava no vértice da outra face tangível da vida, para mostrar que por trás daquele sentido lúdico havia um outro mundo – sério, grave, disciplinador, que nos cobra o preço de cada atitude (como o patrão diante do empregado).
Dezembro funcionava como um emblema de ruptura. Após conhecidas as notas finais com o anúncio da aprovação de uma série para outra, eu me sentia como o prisioneiro que, após cumprir um longo período de penitência, ganhava enfim o alvará de soltura, com o consequente ingresso no universo do riso, das brincadeiras e dos sonhos. Pelos próximos três meses eu ganharia o direito de ser gaivota, da vida senhora e de mim mesmo devota.
Porém afora esse aspecto ilusório, dezembro deixou marcado em mim outros eventos igualmente memoráveis, alguns até traumáticos, que eu, se pudesse, os descartaria em algum cesto apropriado. Como a viagem de dona Eulina para São Luís, véspera de completar 7 anos, deixando-me aos cuidados de Eponima, que vinha a ser uma tia-avó e espécie de segunda mãe. Foi como, tornado árvore, perdesse a resina. Chorei e parecia que me desintegrava em um rio de lágrimas. Chorava para expulsar de mim a dor e a opressão que me devoravam a alma.
Até hoje aquele sentimento de abandono, de que me vi possuído na ausência de minha mãe, se faz externar, sempre que algum signo daquela moldura me vem à memória. Um deles, a música de abertura do programa Um Ouvinte e Seis Sucessos, que a Rádio Ribamar levava ao ar, todas as tardes. O episódio é descrito no livro “Lipe e Juliana”, no capítulo em que o protagonista da história passa uma noite no cárcere.
Dezembro ganhou o direito à imortalidade pelo conjunto da obra, e não apenas por um ou outro ângulo. Véspera de completar 15 anos – precisamente a 3 de dezembro – meus pais me mandaram para São Luís, naquela que seria uma viagem sem volta. Não tive assim o direito de comemorar uma data simbólica entre os meus entes queridos. Mas isso foi apenas um detalhe dentro de uma visão mais ampla. Foi o meu primeiro voo autônomo. Nunca mais dependeria das asas de outrem.
Foi também véspera do Natal que, no Ibacazinho, planejaria a mais ousada operação de Meia-Noite. Como é sabido, a festa de Meia-Noite no interior era comemorada com o roubo de animais – pato, galinha, porco -, que servem de repasto para a celebração noturna. Era a única data, no Ibacazinho, em que roubar animais para esse fim específico não constituía crime, mas apenas uma travessura, digna até de elogios. Junto com os primos Doge, Geraldo (já falecidos) e Vavá, apanhei o pato de estimação de Bornó – o sujeito mais carrancudo e brabo do lugar. Meu intento de levar o bicho à panela, porém, não se concretizou, porque Doge, temendo a reação de Bornó, decidiu por conta própria soltar o animal, que já se encontrava amarrado e muito bem guardado no mato.
Dezembro me propiciou lindas aventuras, de que me garbo até hoje, mas também ofereceu outras que me apertam a alma. Por exemplo, o fim inesperado de um namoro, que me custara anos de tentativas fracassadas até a sua concretização. Não era uma simples aventura, mas algo que poderia me levar a jurar fidelidade eterna diante do padre, ainda que promessas de amor costumem ter prazo de validade determinado.
E o certo é que, mesmo caído de amores por aquela mulher, jamais deixara de alongar o olhar para outras direções. E flagrado em uma dessas travessuras, fui premiado com uma carta, às vésperas do Natal daquele ano, selando o fim de algo que o meu coração dava como duradouro e, talvez, imortal. Como diria o amigo e primo mais próximo, dias depois: “Não era pra ser”. Mas uma voz dentro de mim, que nunca aceitou frases feitas, corrigiu: “Era pra ser sim, se você não fosse burro”.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *